* Marwa Termos
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida” (Simone de Beauvoir).
A recente tomada de poder pelo grupo extremista Talibã no Afeganistão chamou grande atenção de pessoas ao redor do mundo não somente pelo violento sistema judicial e aplicação da sharia, que é um sistema de conduta do islã, mas quanto as consequências destes para as mulheres de todo o país. Não somente isso, mas também levou as pessoas a propagar inúmeras críticas aos muçulmanos, muitos com base em fake news.
São imensuráveis os comentários em “defesa” das mulheres muçulmanas, que acabam, grande parte das vezes retratadas como indefesas e oprimidas.
Inicialmente, é importante tomar cuidado ao abordar uma situação delicada como a situação de garotas e mulheres no Afeganistão, por diversos motivos. O primeiro e mais importante sendo o fato de que apesar delas serem de fato mais vulneráveis a violência durante esse tipo de conflito, no momento em que tomamos como afirmação, priorizamos a imagem dessas mulheres como vítimas de insegurança.
Chimamanda Ngozi Adichie, feminista e escritora nigeriana, fala sobre o perigo de uma única história.
“É assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e é o que ele se tornará. A consequência de uma única história é que ela rouba das pessoas sua dignidade. Enfatiza o quanto somos diferentes, ao invés do quanto somos semelhantes”.
E, consequentemente, aumentando a barreira da desinformação que gera antipatia em relação ao “outro”, assim como sua religião e costumes.
Por isso a necessidade de dar espaço de fala às mulheres mulheres, escutar o que elas tem a dizer sobre suas condições de vida e seu espaço de convivência, e tomar cuidado com o lugar de fala de cada um de nós. É visto muitas vezes, porém, um grande número de pessoas que apesar de ouvir o que elas tem a dizer, simplesmente ignoram, decidindo espelhar seus argumentos em seus pré-conceitos.
É aqui que a ignorância assume um papel maquiavélico.
Antes de formar qualquer opinião, há de buscar entender o máximo possível. Independente do que estamos tentando compreender, do que queremos conhecer.
Sim, há de combater grupos como o Talibã, ainda mais quando ele passa a assumir o controle de um governo.
No caso do Afeganistão, o Estado acaba fazendo o papel do macho opressor, definindo o padrão de vestimentas e comportamentos, assim como a mulher se insere (ou deixa de ser inserida) na sociedade. É necessário destacar que o Talibã não representa o islã, que é um grupo radical. Ou seja, é esse determinado grupo que deve ser condenado, e não a religião como um todo, pois quando a religião é vista isoladamente como meio de definir o que é “certo” e o que é “errado”, a sua suposta preocupação com o bem estar das mulheres não é nada além de islamofobia e xenofobia enraizada.
Audre Lorde, escritora feminina e ativista, disse: “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.”
Como feminista interseccional, meu olhar para as mulheres do Afeganistão no momento não está limitado ao comportamento padrão estabelecido pelas mulheres ocidentais. Longe disso. O feminismo interseccional leva em conta gênero, raça, e classe ao fazer sua análise. É incoerente fazer uma investigação do caso afegão pensando a situação de um ponto de vista ocidental.
O que as mulheres afegãs precisam não é “serem salvas”. Não. Há toda uma agenda fora disso. Sem mencionar que para “oferecer salvação”, atitudes e palavras de natureza depreciativas não ajudam em absolutamente. O que elas precisam é um espaço seguro de fala, de oportunidades.
Infelizmente, o que ocorre é que diversas feministas (com suas diferentes vertentes) acabam, muitas vezes sem perceber, fazendo-se presente nesse sistema arbitrário. Um simples e comum exemplo são as feministas cujo o foco acaba sendo na busca do estabelecimento do lenço/véu como mecanismo opressor. Elas passam a insistir na presença de opressão onde não há. Achamos que precisamos salvar alguma mulher que está confortável exatamente onde ela está. Colocamos na cabeça que ela está numa situação de vítima, olhamos com dó, saímos por aí espalhando coisas erradas sobre a “coitada” que na verdade está vivendo sua vida como escolheu. Usando o lenço/véu por escolha própria, frequentando a faculdade de sua escolha, saindo com os amigos, viajando sozinha, vivendo sua vida como lhe faz bem.
O questionamento é necessário, de fato. Não tem como negar que todos nós como seres humanos e principalmente como mulheres, precisamos repensar tudo ao nosso redor. Precisamos pensar em formas de fazer com que as mulheres residindo em lugar como o Afeganistão num momento como o atual e todas as outras mulheres que estão dentro de em torno de 1.8 bilhões de muçulmanos ao redor do mundo se sintam mais seguras. Perguntá-las como isso pode ser feito.
O alcorão não está oprimindo ao mulheres, o islã não está oprimindo as mulheres.
São as pessoas com suas práticas radicais e visões distorcidas que estão.
Os direitos das mulheres, assim como sua falta, não é exclusividade do islã. Infelizmente, o patriarcado está enraizado em toda e qualquer religião, cultura, e comunidade. A diferença é o complexo de superioridade do povo ocidental, que insiste em fazer o papel de salvador, aquele que procura uma brecha para poder expressar sua islamofobia e disfarçá-la de opinião.
Nós, mulheres muçulmanas, estamos por todos os lado, presentes em todas as esferas. Estamos nos cargos políticos e governamentais, estamos nas universidades. Somos Analistas de Relações Internacionais, professoras, psicopedagogas, psicólogas, médicas, advogadas, fonoaudiólogas, arquitetas, engenheiras.
Então por que só nos vem quando estamos no ambiente doméstico? Não que haja problema em estar onde queira. Porém há esse questionamento.
Nós, mulheres muçulmanas, precisamos de mais oportunidades, de mais lugar de fala.
Estamos dispostas a conversar e explicar mais sobre nossas culturas e religiões, que são diversificadas. Até com aqueles menos dispostos a escutar e aprender, estamos constantemente tentando. Porque essa é uma das formas de educar as pessoas e mudar a visão tão infeliz que se tem de nós.
É cansativo ter que ouvir constantemente comentários de pessoas que acham que estão ajudando porém seus comentários sozinhos já são opressivos. Ouvir constantemente questionamentos como “mas você foi obrigada a usar lenço, né?”, carregado de um olhar de pena. Não questionamos o uso do véu (hábito) pelas freiras, ou o ato de raspar a cabeça ou usar vestes longas pelos budistas. Não ouvimos dizer que são oprimidos por fazê-lo.
Então por que quando se trata dos muçulmanos incomoda tanto?
O caminho a percorrer ainda é longo, mas continuamos a lutar contra o patriarcado e o machismo estruturado na sociedade, ao mesmo tempo que temos que combater todo o preconceito e xenofobia.
Chega em determinado momento em que o problema deixa de ser o véu de uso religioso e cultural.
O que realmente acaba nos vedando é o véu da ignorância.
* Marwa Termos – Militante dos Direitos Humanos e das Mulheres, graduada em Relações Internacionais.