Em 1995, saía o terceiro filme da franquia Batman, sendo o primeiro dos dois dirigidos por Joel Schumacher. Contratado pela Warner para substituir Tim Burton na direção e dar novos ares para o personagem (de preferência menos trevosos), ele é até hoje lembrado pelos mais rasos como ‘’o homem que colocou mamilos na batroupa’’.
No meu entendimento, acho crucial encarar cada uma dessas quatro aventuras como pertencentes a um universo à parte, facilitando assim a compreensão e imersão, sem a necessidade propriamente de estabelecer conexões. É necessário entender a proposta da obra como uma unidade.
Sendo assim, ‘’Batman Forever’’ se estabelece de cara em um universo novo, radiante, espontâneo, cheio de energia. Mas não desprovido dos mistérios, principalmente daqueles que rodeiam a psique dos habitantes da nova exuberante e monumental Gotham City, criada por Bárbara Ling, que sabe equilibrar as sombras da noite para os tormentos, ao mesmo tempo que exala neón e pop-artpara o caricato da natureza exótica e fazer jus às origens coloridas de personagens que nasceram em páginas coloridas.

Uma palavra adequada para englobar o filme é: dualidade. O núcleo dos cinco personagens centrais gira em torno desse conceito. Bruce Wayne (agora vivido por Val Kilmer, em uma versão bem mais séria, e que mostra tormento e melancolia no olhar) encara o dilema de se deve continuar ou não vestindo o manto do morcego, dada as recorrentes memórias envolvendo seu trauma de infância voltando para te atormentar. Ele não sabe quem é, e tampouco, quem deve ser. A dra. Chase Meridian(Kidman), seu interesse amoroso, é uma psicóloga focada em personalidades múltiplas (que oportuno!), mas que, em sua vida pessoal, acaba tendo o dilema amoroso de sempre se apaixonar por fantasias das quais ela tenta se desvencilhar (no caso, a fantasia de Batman o coloca em dilema entre ele e Bruce, um triangulo amoroso entre duas pessoas). A dupla de vilões tem o Charada (Carrey), um aficionado pelo Wayne colocando toda a sua frustração e rejeição em cima de uma persona obcecada pela destruição do próprio; e Duas-Caras (Jones), um indivíduo afetado mentalmente que acaba por ver a dualidade em tudo.
O versátil Schumacher encara de maneira bem eficiente a tarefa de trazer uma história em quadrinhos para a tela, e ele não poupa esforços e nem vontades para poder investir o que for necessário para transpor isso em uma identidade visual própria. Aposta numa linguagem pop, que sabe dosar bem o espetáculo necessário para a teatralidade visual e performática daquele universo e o desenvolvimento dos personagens como peças centrais para mover a história para a frente.
Juntamente com os diversos planos holandeses de Stephen Goldblatt ao longo da projeção, o cuidado é evidente para que a todo momento se enfatize a ideia de que estamos numa realidade fantasiosa, e que o fantástico é o que rege as normas desse universo. Desde até os planos íntimos entre Batman e Chase, até mesmo às perseguições ágeis noturnas de carro entre Batman e Duas-Caras. E tudo isso só melhora com a companhia das versáteis composições de Elliot Goldenthal, que sabe ser melancólico, denso e misterioso quando necessário, ao mesmo tempo que dita como uma marcha os momentos triunfais de ação, emoção e aventura.

A disposição de cores, sempre com muito contraste, saturação e realce, enaltece os cenários e figurinos, que se apegando no conceito de fantasia, contribuem para oextravagante espetáculo visual. E em relação a ele, Schumacher dirige de forma assumida e olha de frente com o brega e o irreal, como um videoclipe em desenho animado para a MTV. Como ele mesmo diria, uma ‘’ópera de cultura pop’’, que enaltece e engrandece o que era contemporâneo em estilo nos anos noventa.

E essa fantasia tende a ter uma própria dualidade, sendo a representada nos vilões como a mais eufórica, extravagante e exagerada; e a nos heróis como a melodramática, densa e existencialista. Charada e Duas-Caras simplesmente vestem a sombra que os pertence, assumem a vilania sem resquícios de moral, são a exata representação do mal que uma fantasia de criança brincando entre bonecos precisa para que a sua história tenha sentido. Enquanto Bruce e Dick são atormentados pelos pensamentos de culpa, que os colocam na posição de serem os responsáveis pela própria queda. E isso, inclusive, é o que cria a proximidade entre os dois, onde Bruce vê em Dick seu espelho, e assim, uma oportunidade inconsciente de reconstruir a sua vida.
Carrey, com sua cara de borracha, deita e rola no personagem, que sabe se deliciar com a vilaniaegomaníaca e vingativa em relação à frustração de se sentir rejeitado por Bruce Wayne. Mas então ele descobre que a pessoa pela qual ele era obcecado não existe, ela é uma mera casca da tormenta que é Batman. Ela, tanto quanto ele, quer ser a persona Bruce Wayne. ‘’Batman Forever’’ é o primeiro filme que coloca Bruce confrontando e se questionando quem ele realmente é. Nesse ponto, infelizmente, uma cena crucial acabou sendo deixada de fora, e que seria de grande proveito ao desenvolvimento desse arco do filme. Onde Bruce encontraria o morcego que ele viu na caverna quando criança (que assim como ele, também cresceu), e o enfrentaria de frente, em uma analogia metafórica do próprio enfrentando seu grande medo (que moldou sua outra persona).

Jones, em compensação, se rende aos exageros, e não corresponde à dualidade da natureza do personagem. Mas a ironia, a meu ver, é que a dualidade se encontra de vermos o quão absurda é a ideia de ver um ator consagrado por papeis sérios e por demonstrar autoridade no olhar ser refém de gracinhas e risadinhas. Ao que sabemos hoje em dia, ele odiava Jim Carrey, mas sendo o bom ator que é, seu personagem parece realmente se divertir com tamanhas bobagens.
Existe uma qualidade de Schumacher que é indiscutível, e essa é a sua coragem. Além de ousar numa identidade visual no assumido colorido, ele trouxe para um personagem pautado na heteronormatividade uma abordagem queer que esse não conhecia (ao menos não conscientemente) desde os anos 60. E que mal existe nisso? Sendo um personagem com tanta história e contextos, uma abordagem diferente, desde que se sustente, não deveria ser um problema. O problema em si está nas mentes preconceituosas que não aceitam a presença do diferente.

E assim como toda fantasia de criança, Forever é um filme que se mostra otimista. Ele se preocupa em desenvolver o lado humano dos personagens, por mais caricata e fantasiosa que seja a sua abordagem. Uma ‘’goma de mascar para os olhos’’, como diria Roger Ebert. Sem dúvidas, uma odisseia visual que prioriza a fantasia no lugar da credibilidade . Mas que tem muito mais para oferecer, se você estiver disposto a fazer uma releitura sem preconceito.
E ah, já que está na moda, #ReleaseTheSchumacherCut.
* Lucas Cavalcanti é estudante de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila)